VÍRGULAS NO PORTUGUÊS: O SEGREDO
“O segredo que os aplicadores de provas não querem que você saiba.”
“Donos de cursinho estão de cabelo em pé com este segredo que está se espalhando entre os estudantes.”
“Garota da região de <IP_location> descobriu este segredo e nunca mais voltou às aulas de gramática.”
Hahaha Não é nada disso. E o que vou explicar no artigo de hoje não é segredo no sentido de “que ninguém deve saber”, “não pode ser divulgado”, “é sabido por poucos”, pegando emprestadas partes das definições do Aulete on-line. Estaria mais para “parte mais difícil e essencial de uma arte, ciência etc.”, da definição 7 do mesmo dicionário, só que não é difícil, como vou mostrar a seguir.
A vírgula no português não é nenhum símbolo esotérico — e também não é orégano para se salpicar a gosto no texto. Ela é usada seguindo, mais do que regras, uma lógica, e essa lógica tem uma questão central que vou explicar aqui. Tendo-a em mente, fica fácil entender, ou até deduzir, as regras mais específicas.
É preciso um pouco de análise sintática, mas sem toda aquela complicação de nomenclaturas assustadoras, do tipo “oração subordinada substantiva objetiva direta” e similares. Vamos simplesmente analisar a sintaxe, que nada mais é que a organização da estrutura das frases — vou inclusive chamar tudo de frase, sem preocupação com distinções entre frase, oração, período… Os gramáticos hão de me perdoar a imprecisão em troca de uma explicação mais eficaz.
Então, partindo do básico e sem esquentar a cabeça com nomenclaturas, vamos lembrar que a ordem típica de palavras numa frase em português é sujeito-verbo-objeto, que é o velho “sujeito e predicado” lá do ensino fundamental, com o predicado se desdobrando em um verbo e um objeto, ou dois, em alguns casos. O núcleo essencial é o verbo, tanto que podem existir frases sem sujeito (“Choveu.”), com sujeito subentendido (“Cheguei.”) e sem objeto (“O menino nasceu.”, além dos dois exemplos anteriores). Mas muitas vezes o verbo não faz sentido sem um complemento, que então é chamado de objeto:
Roberto comprou flores.
O cachorro trouxe a bolinha.
Adriana ingressou na universidade.
O oficial entregou a intimação ao rapaz.
Veja que, em todas as frases, o verbo destacado não faz sentido sem o complemento que vem depois (ou complementos, no caso da última). Cada uma dessas partes essenciais pode ser mais longa, até mesmo uma oração inteira, mas, achando o verbo ou a locução verbal que expressa a ação principal, é fácil ver quem fez a ação (sujeito) e quem sofreu a ação (objeto):
A mulher que ele amava desde a adolescência | tinha acabado de dizer | as mais belas palavras já ouvidas por ele.
Depois da sequência básica de sujeito-verbo-objeto, podem vir outros complementos não obrigatórios, que se diferenciam dos objetos do verbo justamente por não serem obrigatórios:
Adriana ingressou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul numa tarde chuvosa do mês de março de 2019.
Percebeu o uso das vírgulas nos exemplos usados?
Exatamente! Não há vírgula nenhuma. E aí está o ponto: quando a construção da frase segue a ordem mais natural de sujeito-verbo-objeto, seguida ou não de complementos opcionais, não são necessárias vírgulas, por mais longa que seja (derrubando aquela ideia de que vírgula serve para respirar):
Uma das figuras mais controversas da História do Brasil tirou a própria vida com um tiro no peito naquela madrugada de 23 para 24 de agosto de 1954 em que escreveu a carta que se tornaria célebre pela frase de fechamento de sua polêmica versão datilografada.
Se fosse necessária uma vírgula para respirar, seria difícil sobreviver à leitura desse exemplo.
As vírgulas se tornam necessárias quando essa ordem é rompida. Esse rompimento pode ocorrer, por exemplo:
- Pela inversão dos elementos:
Ao rapaz, o oficial entregou a intimação.
No mês de março de 2019, Adriana ingressou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
No mês de março de 2019, Adriana ingressou, numa tarde chuvosa, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
- Pela inserção de explicações ou outras observações no início ou no meio da frase (quando no meio, são isoladas por vírgulas antes e depois):
Ainda apaixonado, Roberto comprou flores para ela.
Por fim, o cachorro trouxe a bolinha.
Adriana ingressou, depois de muito empenho e estudo, na universidade que desejava.
Adriana, que sempre tinha estudado muito, conseguiu ingressar na universidade.
Getúlio Vargas, uma das figuras mais controversas da História do Brasil, suicidou-se em agosto de 1954.
Ingressou na instituição que queria, ou seja, na Universidade Federal de Santa Catarina.
- Pelo acréscimo de uma oração dependente (subordinada) da principal:
Assinado o papel, o oficial entregou a intimação ao rapaz.
O oficial, depois de pedir sua assinatura, entregou a intimação ao rapaz.
O oficial entregou a intimação ao rapaz, pedindo em seguida que ele assinasse o papel.
- Pelo acréscimo de um vocativo para se dirigir ao interlocutor:
Marcelo, viu que Adriana entrou na universidade?
Era a mulher, cara leitora, que ele amava desde a adolescência.
Você foi aprovada, Adriana.
- Pela omissão de elementos subentendidos:
Entrei na universidade em 2018; Adriana, em 2019.
São muitas as situações em que se usam vírgulas e os exemplos acima certamente não cobrem todas elas, mas a intenção era apenas mostrar uma lógica que permeia boa parte de seus usos. De fato, grande parte das regras para usá-las, ainda que enunciadas de outra forma, podem ser compreendidas pensando nesse aspecto da quebra da ordem mais linear das palavras. E a explicação também é fácil de compreender: quando a ordem mais natural é rompida, a frase ficaria mais difícil de entender se não fossem as vírgulas separando os elementos que estão “fora de lugar” ou “sobrando”. Veja como ficariam confusos ou ambíguos alguns dos últimos exemplos acima sem elas:
Marcelo viu que Adriana entrou na universidade?
Era a mulher cara leitora que ele amava desde a adolescência.
Não é nenhum macete espetacular nem a fórmula mágica da pontuação, mas espero que perceber essa lógica (e desmistificar um pouco a análise sintática) ajudem você a usar com mais segurança e correção a vírgula nos seus textos.
Consegue pensar em regras que aprendeu de outra forma e fazem sentido por essa perspectiva? Tem algum exemplo que não se encaixa nela? Coloque aqui nos comentários para discutirmos ou até reunirmos assunto para um novo artigo sobre pontuação.